A arte usa os meios de seu tempo. Mesmo antes do advento da internet ou de sua popularização massiva, assim como o uso de técnicas digitais para a produção criativa, teóricos como Walter Benjamin e Vilém Flusser já apontavam, em seus escritos, que a produção cultural do futuro seria em rede. E quando se trata de arte contemporânea, esse futuro previsto parece já ter chegado.
Nas últimas décadas, experienciamos um rápido processo de digitalização do mundo como um todo e a produção artística atual tem contribuído para que assimilemos estas mudanças enquanto nos engajamos criticamente com tantas transformações.
No Brasil, os artistas que mais têm contribuído para o avanço do tema são exatamente aqueles que conseguem trazer estas discussões além do óbvio, provocando reflexões para mais do mero uso do digital, desde a net art até a Web3.
Com uma larga produção, condizente com suas dimensões, sendo o nosso um dos países cuja população mais utiliza a internet em todo o mundo, seria praticamente impossível sumarizar em qualquer lista o que vem sendo criado por aqui nos últimos anos. Apresentamos, então, apenas alguns dos muitos que tem, através de seus densos trabalhos, sido capazes de endereçar os temas da atualidade de maneira criativa, inovadora e abrangente.
Anarca Filmes
A história da arte digital, no Brasil e no mundo, anda de mãos dadas com a do cinema. Muito do que é entendido como novas mídias, na verdade, são ferramentas usuais da produção fílmica.
Com uma prática que reside na intersecção destes dois universos criativos, o cinema e a arte visual, a Anarca Filmes propõe um pensamento radicalmente atual sobre os temas que aborda em seus trabalhos e os meios que utiliza, questionando o próprio circuito e apresentado seus trabalhos tanto em espaços expositivos tradicionais quanto na internet, passando por festivais e pela cena noturna.
Nomeada como uma proposição coletiva, a Anarca é composta pelas multiartistas Clarissa Ribeiro, Lorran Dias e Amanda Seraphico Badgaleto; seus trabalhos já foram exibidos na Alemanha, no Brasil, na Holanda, no México e em Portugal.
Em 2021, ocupou a plataforma Satélite do Pivô Arte e Pesquisa com a apresentação de Usina-Desejo contra a Indústria do Medo. Entre filmes importantes de sua trajetória de quase uma década e uma produção inédita em que era dada a audiência a possibilidade de direcionar a narrativa do trabalho, a ocupação merece aqui nosso destaque exatamente por questionar a agência do espectador na arte digital para além da interatividade clássica geralmente apresentada nesse tipo de produção.
biarritzzz
Artista transdisciplinar interessada no mundo da internet e na cultura pop e digital, biarritzzz investiga com esse universo as problemáticas dos corpos e mentes dissidentes nas novas mídias, as políticas do meme, e as linguagens e criptografias dessas ferramentas de poder. Em sua pesquisa teórica, ela aborda questões de gênero, raça, instituição, Estado, e identidade, sempre fazendo recortes importantes através de um posicionamento interseccional.
Pioneira de sua geração, usa a linguagem entendida como da internet desde 2012 – completando esse ano uma década de pesquisa robusta e relevante, especialmente em um país como o Brasil, um dos que mais consomem conteúdo digital em todo o planeta.
Além da forte pesquisa e prática visual, vale apontar, a artista também explora as possibilidades do som dentro da mesma investigação que vem construindo nos últimos anos.
Em 2020, lançou o álbum “Eu não sou Afrofuturista”, um projeto desenhado especialmente para a internet onde aproxima suas referências, colaborações e materializa sua pesquisa em torno do que vem chamando de “Pedagogia do Meme”.
Giselle Beiguelman
É impossível falar de prática artística digital na América do Sul sem mencionar a obra e pesquisa de Giselle Beiguelman. Artista, professora, curadora e pesquisadora, Beiguelman é uma das pioneiras no Brasil a tratar as redes de maneira crítica através de seu trabalho e pesquisa. Com reconhecimento nacional e internacional, sua obra integra importantes coleções no Brasil e no mundo, como a Pinacoteca de São Paulo e a ZKM em Berlim.
Entre os diversos trabalhos recentes, com relevante contribuição para o pensamento em torno da produção digital nacional, vale destacar Coronário (2020), net art comissionada pelo Instituto Moreira Salles. A obra é um web-glossário interativo com 25 termos que foram introduzidos às nossas rotinas na pandemia e que, num processo metadiscursivo, indica ao visitante quais as palavras mais acessadas até então. Com o trabalho, Beiguelman mostra não somente a sua habilidade de abordar os temas da atualidade no mundo digital como também a versatilidade de sua produção e mesmo das possibilidades de uso da internet como plataforma artística.

Guerreiro do Divino Amor
Com uma aptidão única de construir trabalhos que operam no limiar dos conceitos de ficção e documentário, o artista Guerreiro do Divino Amor tem como prática principal a confecção de filmes, instalações e publicações. Suas obras exploram a herança colonial da construção do Brasil através daquilo que ele vem chamando de Superficções – narrativas com forte influência da ficção científica, mas intimamente comprometidos com a história do território que escolheu chamar de seu.
De origem Suíça e com mestrado em arquitetura, Guerreiro utiliza sua bagagem multicultural para conceber seus trabalhos. Ao explorar as possibilidades do digital em diversas escalas, desde transições simples e pré-configuradas em softwares de edição até montagens mais complexas, o artista nos mostra o quão manual é o labor digital.
Vencedor do Prêmio PIPA 2019, ano em que também participou do esperado retorno da Bolsa Pampulha, Guerreiro do Divino Amor tem produção única no Brasil.
Para o artista, é de extrema importância que seus trabalhos estejam acessíveis para o maior número de pessoas possível. Por essa razão, todos os seus filmes estão disponíveis na íntegra na internet, bem como suas publicações são sempre lançadas com a maior tiragem possível do projeto.
Ilê Sartuzi
A imagem do corpo dito humano é a cerne da pesquisa de Ilê Sartuzi. Formado pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos selecionados do Prêmio PIPA 2021, o artista se debruça, formal e teoricamente, nas possibilidades de replicação deste corpo-objeto de sua pesquisa com uma abordagem radicalmente contemporânea – mesmo que suas referências históricas estejam latentes na matéria e no discurso.
Atento às transformações do presente, especialmente aquelas do universo do qual faz parte, em 2020, o artista colocou no mundo Dollhouse Gallery: uma casa de bonecas enquanto espaço expositivo digital; apropriando-se tanto do formato do Online Viewing Room quanto da arquitetura do brinquedo infantil.
Com um trabalho que utiliza instalação, escultura, vídeo, webart e até mesmo pintura, Sartuzi desafia uma classificação formal e única para a prática que vem desenvolvendo nos últimos anos.
Em Dollhouse Gallery, os limites entre espaço expositivo, obra, documentação, contexto, imagem e arquitetura estão tão borrados quanto qualquer linha que se tente traçar entre as abordagens de sua pesquisa.

Pêdra Costa
Incorporando performance, antropologia visual e urbana e tarologia em sua prática, Pêdra questiona as tecnologias digitais e as do corpo em experimentos audiovisuais com uma linguagem DIY, do fanzine ao noise. O centro de sua pesquisa é o corpo e suas formas de conexão com a coletividade através da intimidade e sua prática está centrada em narrativas não-hegemônicas, especialmente para repensar e decodificar formas de violência institucional, da igreja ao estado, sempre trazendo à superfície estruturas de poder colonial ainda presentes no cotidiano, particularmente na vida de corpas dissidentes.
Na série de performances “de_colon_isation”, iniciada em 2017, mesmo antes da popularização das lives, a artista utiliza uma câmera em formato de dildo para projetar imagens do seu corpo sendo registradas ao vivo enquanto lê “The Southern Butthole Manifesto”, texto de sua autoria.
Ao unir aparatos digitais e analógicos em um mesmo trabalho, Costa convida sua audiência para interagir com estas tecnologias enquanto aplica os conceitos de sua pesquisa, contribuindo para uma produção de pensamento crítico nacional, anti-colonial e pedagógico no que diz respeito às tecnologias de opressão das subjetividades.

Renan Teles
Uma das principais viradas filosóficas no que diz respeito ao pensamento em torno da imagem é aquela em que a percebemos como um objeto outro, com agência própria, além daquele de mera tentativa de representação fiel da realidade. Dentre os poucos artistas que conseguem se engajar com esse desafio cognitivo de percepção, está em destaque Renan Telles com seu trabalho e investigação.
Com uma pesquisa robusta em torno da imagem fotográfica, em termos formais, a prática de Telles desafia mesmo a essência do que é entendido por arte. Isso porque o artista parte da fotografia para outros meios, desde a própria imagem fotográfica até a pintura, passando ainda por experimentações digitais, como é o caso daquilo que ele vem chamando de fotografia procedural. Nesta última, imagens são construídas e desconstruídas a partir da reiterada manipulação digital de outras e os ruídos do objeto digital se tornando matéria-prima para os artefatos virtuais que constrói. Como resultado, as novas pouco se assemelham àquelas inicialmente utilizadas.

Vita Evangelista
A construção da pesquisa e do corpo de trabalho de Vita Evangelista envolve uma emaranhado de saberes e interesses que se intercruzam por uma investigação constante em torno das estruturas que potencializam e limitam o movimento do corpo humano. Unindo escrita, performance e mídias digitais – especialmente o vídeo – o artista cria o que se propõem a serem narrativas auto-tecno-poéticas. Desta maneira, parte de sua própria experiência e subjetividade para costurar seus trabalhos com uma proposta contra-hegemônica, pautados, entre outros, por assuntos como transfeminismo, movimentos migratórios globais e o uso do avanço das tecnologias digitais no mundo atual como ferramenta de controle e vigilância do corpo humano.
A multidisciplinaridade da prática de Evangelista é própria de uma geração que consegue não só se referenciar a história da arte como lhe foi apresentada, mas fazer uma auto investigação em busca das ferramentas que possui, incluindo a linguagem e sua própria voz e percepção que também são estas tecnologias.
No vídeo-ensaio “Undead Nature”, o artista utiliza imagens do Google Maps para navegar pelo bairro que viveu em Amsterdã enquanto analisa os processos de gentrificação da região. Vita segue a narrativa em uma análise fundamentada em torno da estrutura de linguagem racista e xenofóbica presente nas terminologias utilizadas pelos holandeses para se referirem aos imigrantes.
Endossando ao mesmo tempo sua experiência enquanto imigrante e sua pesquisa acerca da urbanização, histórica e recente, de seu até então bairro, consegue construir um trabalho que, além de técnico e teórico, é fundamentalmente confessional.

Vitória Cribb
Filha de pai haitiano e mãe brasileira, Cribb elabora narrativas digitais e visuais através da criação de avatares 3D, filtros em realidade aumentada e ambientes imersivos, usando o ambiente digital como meio para explicitar investigações atuais atravessadas pelo seu subconsciente, frequentemente abordando questões de raça, gênero e decolonialidade.
Tendo exibido seus trabalhos na Itália, nos Estados Unidos, na Espanha e na Alemanha, a artista faz parte de uma geração que não só consegue disseminar sua pesquisa na web e fora dela, mas também elabora com seus pares discussões relevantes em torno do uso das redes.
Em 2020, Vitória Cribb lançou o filme-ensaio @ilusão durante o programa de Web Residência do OLHÃO, um espaço gerido por artistas localizado na Barra Funda, em São Paulo. No trabalho, que tem trilha própria, a audiência acompanha as reflexões da artista em torno da interação entre corpos e destes com os sistemas que definem a hierarquia digital que organiza as narrativas que consumimos, dentro e fora da internet.
A repetição é um conceito fundamental presente no trabalho. Seja pelo loop observado da violência algorítmica, aquela contra os corpos negros, a exaustão emsimesmada de nossas timelines ou o conjunto de todas estas.
Ao longo do vídeo, observamos o avatar central, totalmente concebido em CGI, em uma atmosfera híbrida entre os espaços sideral e virtual nos apresentar expressões mais que humanas que parecem tentar manifestar a insatisfação com os temas sobre os quais Cribb discorre no vídeo. A voz da artista, que narra o texto autoral e costura o vídeo, é levemente modificada para um timbre melancólico, onírico e um pouco pessimista e dão o tom a um trabalho que, acima de tudo, é fundamentalmente sensorial.

Aposta: Samuel Alves de Jesus
Com um trabalho essencialmente digital, Samuel faz parte de uma geração de jovens artistas que não somente falam a linguagem da Web3 como também estão ajudando a moldar o pensamento do que parece ser um dos caminhos da relação entre arte e da internet, teórica e plasticamente. Suas composições, essencialmente abstratas, fogem do lugar comum do futurismo representativo da maneira que outros movimentos de vanguarda se propuseram a especular. Ainda assim, é inegável a presença de discussões atuais, como a influência da ação antropocêntrica na paisagem natural, nas formas que aparecem em suas obras.
A superfícies dos elementos que emergem no trabalho do artista habitam um plano visual entre o que é entendido como orgânico e sintético para além do híbrido. Mais que uma aproximação entre as duas naturezas materiais, existe a construção de uma interface que, em um primeiro olhar, parece ainda desconhecida – talvez por isso a figura humana esteja ausente em todos os seus trabalhos.
A prática de Alves de Jesus merece destaque, acima de tudo, por não apontar para uma única direção – tanto por não se engajar com uma identidade e linguagem artística e visual única quanto por não se propor a prever um futuro binário que possa ser facilmente antecipado. A abstração presente nos ambientes que concebe, muito mais, aproxima as sensações de incerteza e otimismo que o pensamento de estruturas e sistemas descentralizados apresenta ser possível.
